Carta Forense - Como funciona na prática a
utilização das "cláusulas gerais" pelos magistrados na hora fixar o alcance das
normas consumeristas?
Luiz Antonio Rizzatto Nunes - Como se sabe, as chamadas "cláusulas gerais" são normas jurídicas que
permitem, ou melhor, impõe ao juiz o dever de desvendar para aquele caso
concreto que ele está examinando, qual seria a melhor e mais adequada norma de
conduta que deveria ter sido seguida pelas partes. No Código de Defesa do
Consumidor, uma das cláusulas gerais mais importantes é a da boa-fé objetiva.
Lembre-se o funcionamento prático: surgido uma dúvida de como deveria ter sido
a postura das partes, o magistrado elabora um raciocínio, no caso com base no "standart" da boa-fé objetiva, e descobre
como é que deveria ter sido o comportamento. É importante notar que, por
exemplo, a boa-fé objetiva vale tanto para o fornecedor quanto para o
consumidor. No caso concreto, é possível avaliar se um ou outro se comporto de
acordo com a norma advinda da cláusula geral.
No meu livro "Comentários ao Código
de Defesa do Consumidor" eu cito uma hipótese de violação da boa-fé objetiva por parte do
consumidor. Quando trato da possibilidade de erro na oferta, eu digo que ela
pode ocorrer na seguinte hipótese: é possível aceitar o erro
como escusa do cumprimento da oferta, se a mensagem, ela própria,
deixar patente o erro, pois, caso contrário, o fornecedor sempre poderia alegar
que agiu em erro para negar-se a cumpri-la. Eis o exemplo: vamos supor que uma
loja que venda eletrodomésticos resolva fazer uma oferta especial para vender
televisores de 20 polegadas em cores. Digamos que o preço regular dessa TV, no
mercado, seja R$ 600,00. A promoção será anunciada num domingo em dois jornais
de grande circulação: será oferecida a venda de 100 aparelhos de TV pelo preço
de R$ 500,00 (ou o equivalente a 20% de desconto sobre o preço regular).
Acontece
que, por erro de digitação num dos veículos, o anúncio saiu errado. No jornal "A",
a TV é anunciada por R$ 450,00, e no "B" por somente R$
5,00 (cinco reais!).
Será
difícil para o fornecedor recusar-se ao cumprimento da oferta firmada no anúncio
do jornal "A", porquanto é bem plausível uma promoção daquele tipo (25% de
desconto sobre o preço regular). Mas, quanto ao anúncio do jornal "B", pode o
fornecedor recusar a oferta, porque o erro é grosseiro, flagrante. A oferta é
evidentemente falha, contrariando qualquer padrão regular e usual de preço de
venda do produto daquele tipo. Nessa última hipótese, o consumidor que
pretendesse exigir o cumprimento da oferta evidentemente errada, estaria
violando o princípio da boa-fé objetiva e, num eventual caso concreto, o
magistrado descobriria que o comportamento adequado seria o de desprezar a
oferta mal apresentada e não propor ação visando sua execução. Anoto que um
caso similar ocorreu, de ato, no Rio Grande de Sul.
Cito também um caso recente julgado no Tribunal de
Justiça de São Paulo, no qual um banco foi condenado a indenizar por danos
morais o autor-consumidor, que permaneceu negativado no cadastro de
inadimplentes mesmo após ter sido quitada a dívida com base numa ação de busca
e apreensão de veículo. Dispôs o acórdão que: "Após a sentença que
consolidou a posse e propriedade do veículo com o banco - datada de 21.10.2004
- satisfeita a dívida, era obrigação sua proceder ao cancelamento do
apontamento, medida essa que, no entanto, não foi adotada, nem naquela
oportunidade e nem em nenhuma outra. Tal situação perdurou até 22.09.2008,
quando foi deferida a liminar ordenando o cancelamento das negativações". E que "A manutenção do apontamento foi, pois,
injustificada e nula de pleno direito, eis que a dívida foi paga, não havendo
mais valor a ser apontado. Além disso, ao mantê-la, o banco agiu de forma
incompatível com seu dever fundamental de lealdade e honestidade. Feriu,
portanto, o princípio da boa-fé objetiva, fundamento de todo sistema jurídico,
e que pode e deve ser observado em todo tipo de relação existente, eis que é
por meio da boa-fé objetiva que se estabelece o equilíbrio esperado para a relação,
qualquer que seja esta. Este equilíbrio ___ tipicamente
caracterizado como um dos critérios de aferição de Justiça no caso concreto ___,
é e deve ser concretamente verificável em cada relação jurídica (contratos,
atos, práticas etc)" (Apelação
7.409.980-4, 23ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP, de minha relatoria, j.
18-11-09, v.u)...
CF - Qual seu posicionamento
acerca da pessoa jurídica ser caracterizada como consumidora?
LARN - Parece-me que a resposta à essa questão não encontra mais
resistência nem na doutrina nem na jurisprudência:não resta qualquer dúvida de
que a pessoa jurídica é também consumidora. Na lei a questão sempre foi clara,
pois o CDC é expresso em reconhecer a pessoa jurídica como consumidora no caput do artigo 2º.
CF - Como o senhor vê a aplicação
da Teoria da Desconsideração Jurídica pela jurisprudência nos dias atuais?
LARN - Penso que nessa questão o Judiciário tem andado muito
bem. Não só por aplicação das regras estabelecidas no art. 28 do CDC, como também
pela tomada de consciência de que, algumas vezes a pessoa jurídica tem servido
de fachada para lesar consumidores e demais agentes da área econômica, civil,
tributária etc. De fato, cada vez
mais se percebe que á necessário superar o obstáculo formal da capa da pessoa
jurídica para, buscando bens dos sócios,
poder garantir o direito da parte que por ela foi lesada.
CF- O Cadastro de inadimplentes e
o Direito do Consumidor é uma das maiores discussões dentro desta seara. Como o
senhor enxerga a questão?
LARN - Não conheço nenhum argumento que ponha em dúvida a aplicação
do CDC aos cadastros de inadimplentes. A matéria está totalmente regulada pela
Lei (arts. 43 a 44) que, inclusive, transformou os bancos de dados e cadastros
relativos a consumidores em entidades de caráter público (parágrafo 4º do art. 43). De modo que,
independentemente da origem da dívida a ser anotada (se de consumo ou
comercial) a lei a ser seguida em caso de discussão sobre o registro, sua
alteração ou cancelamento é, sem dúvida, o CDC.
CF - Que grandes avanços
jurisprudenciais tivemos em relação aos planos de Saúde?
LARN - Essa é uma área em que se pode fazer um grande elogio ao
Poder Judiciário. Aliás, não de agora, pois antes mesmo da edição do CDC, que
entrou em vigor em 11-3-1991 e da Lei 9.656, que regulou os planos privados e
seguros de saúde, que é de 1998, o Judiciário vem coibindo os abusos praticados
pelas operadoras de planos de saúde. Anoto que, inclusive, algumas normas
prescritas na Lei 9656 tiveram inspiração em decisões judiciais. E, de fato,
infelizmente, não tem restado alternativa ao consumidor brasileiro a não ser
recorrer ao Judiciário para fazer valer seus direitos perante as operadoras.
CF - As empresas de telefonia
insistem em liderar o "ranking" de
reclamações, todos os anos, não
demonstrando a menor preocupação em mudar. Qual solução o senhor sugere para
que ocorra uma mudança?
LARN - Eu penso que existem os seguintes modos de brecar os
abusos: 1. A propositura de ações coletivas, visando de uma só vez resolver
milhares de práticas abusivas. As empresas de telefonia abusam regularmente de
centenas, milhares de consumidores. As ações individuais não tem o condão de
impedir esses abusos feitos no atacado, pois mesmo sofrendo derrotas judiciais,
os benefícios são maiores do que as perdas. 2. Nas ações judiciais pleiteando
indenização por danos morais, é
preciso que os valores passem a ser majorados para, com isso, também se
desistimular a continuidade das praticas abusivas. 3. O Estado devia agir mais
firmemente por intermédio da Anatel, punindo e regulamentando mais o setor. 4.
A implementação efetiva da concorrência entre as empresas. Mas, essa concorrência
tem de ser real e não da maneira como ainda aparece aos consumidores com
publicidade complexa e confusa cobre os supostos benefícios. Do jeito como
funcionam atualmente as ofertas, fica difícil saber qual é a mais vantajosa e
pior: não é possível nelas confiar porque muitas são enganosas ou não são
cumpridas.
CF - A inversão do ônus da prova não
é aplicada em todo processo. Quais são as condições para sua aplicação?
LARN - Para responder à essa questão é
importante desde logo lembrar que o CDC constitui-se num sistema autônomo e próprio,
sendo fonte primária (dentro do sistema da Constituição) para o intérprete.
Dessa forma, instaurado o processo judicial civil o CDC será o ponto de
partida, aplicando-se a seguir, de forma complementar, as regras do Código de
Processo Civil. O que eu quero dizer é que para entender a produção das provas
em casos que envolvam as relações de consumo é necessário levar em conta toda a
principiologia da Lei n. 8.078, que pressupõe, entre outros princípios e
normas, a vulnerabilidade do consumidor,
sua
hipossuficiência (especialmente técnica e de informação), o plano geral da
responsabilização do fornecedor, que é de natureza objetiva etc.
Ao
lado disso, têm-se, na lei consumerista, as determinações próprias que tratam
da questão da prova. Na realidade, é a vulnerabilidade reconhecida no inciso I
do art. 4º que principalmente justifica a proteção do consumidor nesse
aspecto. A primeira situação
envolvendo provas na lei consumerista é a relacionada à responsabilidade civil
objetiva do fornecedor pelo fato do produto e do serviço (arts. 12 a 14), bem
como à responsabilidade pelo vício do produto e do serviço (arts. 18 a 20, 21,
23 e 24) e que se espraia por todo o sistema normado da Lei n. 8.078/90. Haverá,
por exemplo, necessidade de o consumidor provar o nexo de causalidade entre o
produto, o evento danoso e o dano, para pleitear a indenização por acidente de
consumo.
E a
produção dessa prova preliminar necessária se fará pelas regras do Código de
Processo Civil, a partir dos princípios e regras estabelecidos no CDC.
Todavia,
ainda essa prova, como qualquer outra que tiver de ser produzida, deverá
guiar-se pelo que está estabelecido no art. 6º, VIII, do CDC (e também no art.
38, no caso específico da publicidade).
Mas,
além de tudo isso, consigno que em matéria de produção de prova o legislador, ao
dispor que é direito básico do consumidor a inversão do ônus da prova, o fez
para que, no processo civil, concretamente instaurado, o juiz observasse a
regra.
E a
observância de tal regra ficou destinada à decisão do juiz, segundo seu critério
e sempre que se verificasse a verossimilhança das alegações do consumidor ou
sua hipossuficiência.
Por
isso, para entender o sentido do pretendido pela lei é preciso primeiro
compreender o significado do substantivo "critério", bem como o do uso da
conjunção alternativa ou.
O
substantivo "critério" há de ser avaliado pelo valor semântico comum, que já
permite a compreensão de sua amplitude.
Diga-se
inicialmente que agir com critério não tem nada de subjetivo.
"Critério"
é aquilo que serve de base de comparação, julgamento ou apreciação; é o princípio
que permite distinguir o falso do verdadeiro, o errado do certo ou, em última
instância, aquilo que permite medir o discernimento ou a prudência de quem age
sob esse parâmetro.
No
processo civil, como é sabido, o juiz não age com discricionariedade (que é
medida pela conveniência e oportunidade da decisão). Age sempre dentro da
legalidade, fundando sua decisão em bases objetivas.
O que
a lei processual lhe outorga são certas concessões, como acontece, por exemplo,
na fixação de prazos judiciais na hipótese do art. 13 ou do art. 491, ambos do
Código de Processo Civil.
Assim,
na hipótese do art. 6º, VIII, do CDC, cabe ao juiz decidir pela inversão do ônus
da prova se for verossímil a alegação ou hipossuficiente o consumidor.
Vale
dizer, deverá o magistrado determinar a inversão. E esta se dará
pela decisão entre duas alternativas: verossimilhança das alegações ou
hipossuficiência.
Presente
uma das duas, está o magistrado obrigado a inverter o ônus da prova.
No que
respeita à questão da verossimilhança, anoto que o vocábulo "verossímil" é
indeterminado, mas isso não impede que da análise do caso concreto não se possa
aferir verossimilhança.
Para
sua avaliação não é suficiente, é verdade, a boa redação da petição inicial. Não
se trata apenas do bom uso da técnica de argumentação que muitos profissionais
têm. Isto é, não basta relatar fatos e conectá-los logicamente ao direito, de
modo a produzir uma boa peça exordial.
É
necessário que da narrativa decorra verossimilhança tal que, naquele momento,
da leitura se possa aferir, desde logo, forte conteúdo persuasivo.
E, já
que se trata de medida extrema, deve o juiz aguardar a peça de defesa para
verificar o grau de verossimilhança na relação com os elementos trazidos pela
contestação. E é essa a teleologia da norma, uma vez que o final da proposição
a reforça, ao estabelecer que a base são "as regras ordinárias de experiência".
Ou, em outros termos, terá o magistrado de se servir dos elementos apresentados
na composição do que usualmente é aceito como verossímil.
É fato
que a narrativa interpretativa que se faz da norma é um tanto abstrata, mas não
há alternativa, porquanto o legislador se utilizou de termos vagos e imprecisos
("regras ordinárias de experiência"). Cai-se, então, de volta ao aspecto da
razoabilidade e, evidentemente, do bom senso que deve ter todo juiz.
E, no
que diz respeito à hipossuficiência, lembro que o termo não tem conteúdo econômico,
mas técnico.
A
vulnerabilidade é o conceito que afirma a fragilidade econômica do consumidor e
também técnica. Porém, hipossuficiência,
para fins da possibilidade de inversão do ônus da prova, tem sentido de
desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas
propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, de sua distribuição,
dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente
de consumo e o dano, das características do vício etc.
Por
isso, o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor para fins de inversão
do ônus da prova não pode ser visto como forma de proteção ao mais "pobre". Ou,
em outras palavras, não é por ser "pobre" que deve ser beneficiado com a inversão
do ônus da prova, até porque a questão da produção da prova é processual, e a
condição econômica do consumidor diz respeito ao direito material.
Na
realidade, para beneficiar o carente econômico no processo não seria necessária
a inversão. Bastaria a determinação judicial de que o fornecedor arcasse com
eventuais custas processuais para a produção de provas, tais como as periciais.
Determinar-se-ia a inversão do pagamento, ou seja, o consumidor produz a prova
e o fornecedor a paga, e aí sim estar-se-ia protegendo, de forma justa, o
economicamente fraco.
Não se
pode olvidar que, para os "pobres" na acepção jurídica do termo, existe a justiça
gratuita, a qual permite ao beneficiário a isenção do pagamento das custas
judiciais, o que não significa que ele está isento de provar o seu direito.
Com
efeito, o art. 4º da Lei n. 1.060/50 (conhecida como Lei de Assistência Judiciária)
dispõe: "A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante
simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de
pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio
ou de sua família", regrando seu o § 1º que "presume-se pobre, até prova em
contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta Lei, sob pena de
pagamento até o décuplo das custas judiciais".
Assim,
se a questão for meramente de falta de capacidade financeira de suportar o
custo do processo, basta ao consumidor servir-se do benefício legal da Lei n.
1.060/50.
E o
inverso é verdadeiro: existem consumidores economicamente poderosos, o que não
implica a sua não-hipossuficiência técnica. Mas, mesmo no caso de o consumidor
ter grande capacidade econômica, a inversão do ônus da prova deve ser feita na
constatação de sua hipossuficiência (técnica e de informação). (Deixe-me
aproveitar este espaço para informar para quem tiver interesse na questão dos
benefícios da assistência judiciária, que há um artigo meu sobre o assunto
publicado no site da Editora
Saraiva. Existe uma enorme confusão entre assistência jurídica gratuita
integral e assistência judiciária gratuita, que lá busco solver).
CF - Qual
seu posicionamento acerca da antecipação de pagamento de despesas processuais
nos casos de inversão do ônus da prova?
R.: Para
responder à questão, início tratando da polêmica em torno do momento processual
no qual o magistrado deverá decidir a respeito da inversão do ônus da prova. Em
minha opinião, como demonstrarei, a discussão é fruto de falta de rigorismo lógico
e teleológico do sistema processual instaurado pela Lei n. 8.078 e ainda resquícios
da memória privatista do regime do processo civil tradicional.
Com
efeito, os que entendem que o momento de aplicação da regra de inversão do ônus
da prova é o do julgamento da causa, alinham o pensamento com a distribuição do
ônus da prova do art. 333 do Código de Processo Civil e não com aquela instituída
no CDC.
É que
as partes que litigam no processo civil, fora da relação de consumo, têm
clareza da distribuição do ônus. Ou, melhor dizendo, os advogados das partes
sabem de antemão a quem compete o ônus da produção da prova. Veja-se o que diz
o art. 333 da lei adjetiva:
"Art.
333. O ônus da prova incumbe:
I - ao
autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II -
ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou
extintivo
do direito do autor".
Trata-se,
portanto, de distribuição legal do ônus que se faz, sem sombra de dúvida.
E,
claro, nesse caso não precisa o juiz fazer qualquer declaração a respeito da
distribuição do gravame. Basta levá-lo em consideração no momento de julgar a
demanda. Não haverá, na hipótese, qualquer surpresa para as partes, porquanto
elas sempre souberam a quem competia a desincumbência da produção da prova.
Ora, não
é essa certeza que se verifica no sistema da lei consumerista.
Não
teríamos dúvida em afirmar que nas relações de consumo o momento seria o mesmo se
a Lei n. 8.078 dissesse: "está invertido o ônus da prova". Aliás, como
fez na hipótese do art. 38.
Mas
acontece que não é isso o que determina o CDC: a inversão não é automática!
Como
vimos antes, a inversão se dá por decisão do juiz diante de alternativas postas
pela norma: ele inverterá o ônus se for verossímil a alegação ou se for
hipossuficiente o consumidor.
É que
pode acontecer de nenhuma das hipóteses estar presente: nem verossímeis as
alegações nem hipossuficiente o consumidor. Anotamos acima que verossimilhança é
conceito jurídico indeterminado.
Depende
de avaliação objetiva do caso concreto e da aplicação de regras e máximas da
experiência para o pronunciamento.
Logo,
o raciocínio é de lógica básica: é preciso que o juiz se manifeste no processo
para saber se o elemento da verossimilhança está presente.
Da
mesma maneira, a hipossuficiência depende de reconhecimento expresso do
magistrado no caso concreto. É que o desconhecimento técnico e de informação
capaz de gerar a inversão tem de estar colocado no feito sub judice. São
as circunstâncias do problema aventado e em torno do qual o objeto da ação gira
que determinarão se há ou não hipossuficiência (que, como regra geral, atinge a
maior parte dos consumidores). Pode muito bem ser caso de consumidor engenheiro que tinha claras condições
de conhecer o funcionamento do produto, de modo a ilidir sua presumida
hipossuficiência. Como pode também ser engenheiro e ainda assim, para o
caso,
constatar-se sua hipossuficiência.
Então,
novamente o raciocínio é de singela lógica: é preciso que o juiz se manifeste
no processo para saber se a hipossuficiência foi reconhecida.
E, já
que assim é, o momento processual mais adequado para a decisão sobre a inversão
do ônus da prova é o situado entre o pedido inicial e o saneador. Na maior
parte dos casos a fase processual posterior à contestação e na qual se prepara
a fase instrutória, indo até o saneador, ou neste, será o melhor momento.
Não
vejo qualquer sentido, diante da norma do CDC, que não gera inversão automática
(à exceção do art. 38), que o magistrado venha a decidir apenas na sentença a
respeito da inversão, como se fosse uma surpresa a ser revelada para as partes.
Há,
também, a importante questão do destinatário da norma estatuída no inciso VIII
do art. 6º.
Entendemos
que, muito embora essa norma trate da distribuição do ônus processual de provar
dirigido às partes, ela é mista no sentido de determinar que o juiz
expressamente decida e declare de qual das partes é o ônus.
Como a
lei não estipula a priori quem está obrigado a se
desonerar e a fixação do ônus depende da constatação da verossimilhança ou
hipossuficiência, o magistrado está obrigado a se manifestar antes da verificação
da desincumbência, porquanto é ele que dirá se é ou não caso de inversão.
E
ainda há mais. Trata-se do problema do ônus econômico da produção da prova,
cuja pergunta me é formulada e que agora respondo.
Tomemos
como exemplo a perícia.
Se
ficasse para a sentença a resolução e se o juiz decidisse que não havia nem
verossimilhança nem hipossuficiência do consumidor e que este, portanto, teria
de ter produzido prova pericial e não o fez porque não tinha dinheiro para
adiantar os honorários provisórios do perito, estaríamos diante de um absurdo.
Esse
outro fato corrobora nosso entendimento no sentido de que a inversão deve ser
decidida até ou no saneador, com o seguinte acréscimo: sendo invertido o ônus
da prova, quem deve arcar com o custo do adiantamento das despesas, por
exemplo, relativas à perícia? Qual parte deve arcar com o adiantamento dos
honorários do perito judicial?
Ora, a
resposta salta aos olhos: se o sistema legal protecionista cria norma que
obriga à inversão do ônus da prova, como é que se poderia determinar que o
consumidor pagasse as despesas ou honorários?
Uma
vez determinada a inversão, o ônus econômico da produção da prova tem de ser da
parte sobre a qual recai o ônus processual. Caso contrário, estar-se-ia dando
com uma mão e tirando com a outra.
Se a
norma prevê que o ônus da prova pode ser invertido, então automaticamente vai
junto para a outra parte a obrigação de proporcionar os meios para sua produção,
sob pena de - obviamente - arcar com o ônus de sua não-produção.
Se
assim não fosse, instaurar-se-ia uma incrível contradição: o ônus da prova
seria do réu, e o ônus econômico seria do autor (consumidor).
Como
este não tem poder econômico, não poderia produzir a prova. Nesse caso, sobre
qual parte recairia o ônus da não-produção da prova?
Anote-se,
em acréscimo e por fim, que, em matéria de perícia técnica, o grande ônus é
econômico, relativo ao pagamento de honorários e despesas do perito e do
assistente técnico.
CF - Como hoje está
disciplinada a intervenção de terceiro neste tipo de demanda?
R.: Há
uma regra no art. 88 do CDC que veda a denunciação da lide na hipótese do
comerciante que sofre a ação de indenização e pretende exercer seu direito de
regresso.
A
regra de denunciação da lide é aquela do art. 70 do Código de Processo Civil,
que dispõe:
"Art.
70. A denunciação da lide é obrigatória:
I - ao
alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo
domínio
foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que
da
evicção lhe resulta;
II -
ao proprietário ou ao possuidor indireto quando, por força de
obrigação
ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pignoratício,
do
locatário, o réu, citado em nome próprio, exerça a posse direta da
coisa
demandada;
III - àquele
que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar,
em ação
regressiva, o prejuízo do que perder a demanda".
Para o
caso do art. 13 do CDC, a incidência seria, então, a do inciso III do art. 70.
São
duas as razões para que a lei consumerista impeça a denunciação:
a)
para evitar o retardamento do feito;
b)
porque a responsabilidade do comerciante para com o consumidor é objetiva,
enquanto a do comerciante para com os demais co-responsáveis é subjetiva. Isso
traria um acréscimo e maior atraso no processamento, pois na lide secundária
que se instalaria entre o comerciante-denunciante e o outro
fornecedor-denunciado estar-se-ia discutindo culpa ou dolo.
De
qualquer modo, por questão de economia processual, o comerciante poderá, após
ressarcir o consumidor, prosseguir nos mesmos autos em face do(s) outro(s)
responsável(is).
São
duas, portanto, as bases que fluem da redação do art. 88. De um lado o princípio
de economia processual, já que permite o prosseguimento da ação de regresso nos
mesmo autos; mas, de outro lado, e antes desse princípio, a norma impede a
aglutinação de ações indiretas no mesmo feito, ao proibir a denunciação da
lide. Na verdade, a norma do art. 88 é incompleta.
Obviamente
está vedada a denunciação da lide e também o chamamento ao processo. Se a regra
pretende evitar o prolongamento do processo com ações paralelas, tem de proibir
tanto a denunciação da lide quanto o chamamento ao processo.
Poderá o terceiro interessado ingressar
nos autos como assistente da parte, com base no art. 50 do CPC.
CF - Como o senhor vê
o papel do STJ na sedimentação da jurisprudência consumerista?
R.: Vejo com muito
bons olhos, porque evidentemente as decisões do STJ, assim como suas Súmulas em
matéria de relações de consumo tem servido para uniformizar a jurisprudência
dos demais Tribunais do país, gerando maior segurança jurídica.