"Uma nova forma de tutela do cidadão
diante do Estado"
Um estudante
havia perguntado a Confúcio o que tornaria uma organização estatal excelente.
Após detidamente refletir sobre a indagação, o filósofo respondeu que a
excelência adviria de um exército competente, das riquezas dos cidadãos e da
confiança que o povo deposita no seu soberano. Irrequieto, o estudante
novamente questionou o que seria possível renunciar caso nem tudo pudesse ser
alcançado. Provocado, Confúcio respondeu que a confiança era a única coisa que
não poderia ser abandonada. Comida e bebida, disse o sábio, são necessárias
para a sobrevivência e sem elas o ser humano acaba perecendo. No entanto, a
inexistência de confiança é algo impossível de se admitir, pois um Estado não
viveria um dia sem ela.
Sem
confiança, só existe a possibilidade de concretização de formas muito simples e
imediatas de cooperação entre os seres humanos. A confiança será indispensável,
portanto, para elevar, acima desse nível elementar, a complexidade e o
potencial das atividades numa sociedade. Não se consegue construir uma
sociedade muito complexa sem o pilar da confiança. Ela torna a incerteza
tolerável.
A vida tem se mostrado cada vez
mais dinâmica e os constantes anseios por mudanças na sociedade contemporânea
podem provocar frustrações nos indivíduos e, até mesmo, o desmoronamento dos
alicerces de um caminho trilhado. O progresso não deve ser inibido, e o Estado
precisa adotar uma postura flexível e dinâmica, mas que não comprometa a
confiança do indivíduo na estabilidade do ordenamento e nas suas posições
jurídicas. Abertura a inovações e flexibilidade são conceitos cada vez mais
associados à imagem de um Estado moderno e a obtenção de um equilíbrio entre
essas demandas e as de estabilidade deve tornar-se uma importante incumbência
de todo ordenamento jurídico.
Do
ponto de vista jurídico, os cidadãos não devem ser submetidos a constantes
modificações do comportamento estatal, as quais não puderam considerar em seus
planos originais. A confiança depositada nas instituições estatais deve ser
respeitada. Caso contrário, as pessoas evitarão relacionar-se juridicamente com
o Estado e buscarão vias alternativas, e não tão idôneas, para a preservação de
seus interesses.
Os cidadãos devem ter o direito a uma
relativa continuidade das decisões estatais em que depositaram uma dose de
confiança e devem poder confiar que seus atos e planos empreendidos com base em
comandos pretéritos do Poder Público serão plenamente reconhecidos e
respeitados pelo ordenamento. Continuidade não significa petrificação, mas
mudança com consistência e constância.
O instituto de Direito capaz de
assegurar uma plena tutela à confiança dos indivíduos nos atos estatais é o
princípio da proteção da confiança. Ele não surge em razão de uma decisão
jurisprudencial específica, de uma particular alteração no texto constitucional
ou de alguma lei que sobre ele dispusesse exclusivamente. Sua criação tem, na
realidade, origem em distintos julgados no seio da jurisprudência alemã, que o
emprega para a resolução dos mais diferentes conflitos e de onde o princípio
vai ser extraído para encontrar ampla ressonância nos estudos doutrinários.
O princípio da proteção da confiança
precisa consagrar a possibilidade de defesa de determinadas posições jurídicas
do cidadão diante de mudanças de curso inesperadas promovidas pelo Legislativo,
Judiciário e pelo Executivo. Ele tem como propósitos específicos preservar a
posição jurídica alcançada pelo particular e, ainda, assegurar uma continuidade
das normas do ordenamento. Trata-se de um instituto que impõe freios contra um
excessivo dinamismo do Estado que seja capaz de descortejar a confiança dos
administrados. Serve como uma justa medida para confinar o poder das autoridades
estatais e prevenir violações dos interesses de particulares que atuaram com
esteio na confiança.
O princípio da proteção da confiança não
deve se prestar, apenas, à tutela de direitos adquiridos. Para essa missão, a
Constituição brasileira já trouxe expressamente um dispositivo específico.
Deve, além disso, servir de instrumento para a defesa de expectativas ainda não
transformadas no conceito tradicional de direito subjetivo incorporado
definitivamente a um patrimônio individual.
O princípio tem desempenhado relevante
papel na proteção do particular contra leis retroativas, na anulação de atos
administrativos viciados com efeitos favoráveis, na vinculação de atos
estatais, na proteção contra mudanças de orientações administrativas e na
tutela contra mudanças retroativas na jurisprudência. Além disso, sua adoção
também é responsável por um considerável aumento na aceitação voluntária das
decisões estatais. Quando um agente público respeita a confiança depositada
pelos particulares nos seus atos, há uma maior probabilidade de seu
reconhecimento como uma autoridade legítima, e, por conta disso, aumentam as
chances de que seus atos sejam cumpridos num ambiente de cooperação.
A despeito do relevante papel que a
dicotômica construção doutrinária que separa os direitos adquiridos das
expectativas de direito tem representado para o Direito, ela é insuficiente
para solucionar todas as dificuldades surgidas em razão das violações nas
expectativas que os particulares depositam no Estado. A tutela estatal voltada
exclusivamente para os direitos adquiridos simboliza uma antiga forma de
proteção da confiança. O que já passou a fazer parte do patrimônio de um
cidadão na condição de um direito adquirido não lhe pode ser idoneamente
retirado sem sua concordância. Essa assertiva não é, todavia, suficiente para a
preservação, que é justa, das situações intermediárias do processo de aquisição
de um direito, o que torna o instituto dos direitos adquiridos um instrumento
débil para a tutela de expectativas legítimas.
A proteção da confiança e o direito
adquirido são conceitos que não se igualam. Este último protege posições
jurídicas integral e definitivamente incorporadas ao patrimônio de um
particular, algo que já foi integralizado em um momento anterior ao de uma dada
alteração normativa. Serve para essencialmente proteger relações jurídicas
concluídas no passado. Já a proteção da confiança vai além, e pode garantir
posições jurídicas ainda não encerradas ou, até mesmo, nascidas de atos
estatais ilegais.
Para que o princípio da proteção da
confiança tenha plena efetividade, o ordenamento deverá proporcionar ao cidadão
uma proteção que possa materializar-se na forma procedimental ou substancial. A
primeira se refere à proteção obtida mediante um procedimento, que conte com a
efetiva participação do particular, a ser adotado antes da decisão estatal
capaz de frustrar uma expectativa legítima. A segunda modalidade de proteção,
que visa à concreta tutela da expectativa, pode, por sua vez, apresentar-se por
meio de uma tutela da preservação do ato, da fixação de uma
compensação ou através da criação de regras de transição.