Primeiramente, um esclarecimento. Esta articulista, desde o advento do Código Civil de 2002, quando teve a grata satisfação de contribuir com proposições legislativas na fase senatorial e como membro da comissão de revisão do respectivo projeto de lei no seu processo bicameral, sempre elogiou e lutou pela devida interpretação do disposto no artigo 1.593 desse diploma legal, pelo qual O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. Esse apoio deve-se em especial ao enquadramento da filiação socioafetiva na ordem civil. Ao referir-se à outra origem, em cláusula geral e aberta, esse dispositivo legal eleva a socioafetividade ao patamar de parentesco civil, o que não ocorria na legislação anterior, que restringia o vínculo parental às relações consanguíneas e adotivas.
O parentesco socioafetivo contempla os mesmos efeitos em vida – direito de guarda, direito de ter a companhia do filho ou vulgarmente chamado direito de visitas, dever de educação e dever de sustento ou obrigação alimentar – e sucessórios – direitos hereditários, incluindo o direito à legítima – do vínculo consanguíneo (Washington de Barros Monteiro e Regina Beatriz Tavares da Silva. Curso de Direito Civil: Direito de Família, 42ª ed., São Paulo: Saraiva, p. 423/432).
No entanto, essa cláusula geral, como toda a cláusula legislativa abrangente, precisa ser devidamente interpretada, sob pena de banalização da relação de parentesco socioafetivo.
Há duas espécies de parentesco socioafetivo.
A primeira espécie é a registral, configurada no registro de filho alheio como próprio, que antigamente se denominava “adoção à brasileira”; por sinal, péssima essa expressão que dava a falsa conotação de que a adoção, para ser brasileira, precisaria ser irregular.
A segunda espécie é a parental por afinidade, decorrente da relação entre o pai ou mãe socioafetivo e o filho de seu cônjuge ou companheiro.
Por meio de nomes fictícios, explicaremos os seus requisitos: Ana, a mãe biológica; Antonio, o filho; Pedro, o pai socioafetivo; e João, o pai biológico.
Na espécie registral, o primeiro requisito é a inexistência de vício de consentimento de quem realiza o registro, ou seja, Pedro, que realiza o registro de Antonio, sabia que Antonio era filho de João e registra-o como seu por ato de vontade. O segundo requisito é o tratamento paternal dispensado por Pedro a Antonio e sua reputação como filho biológico desse casal, formado por Ana e Pedro.
O reconhecimento desses requisitos ocorreu na V Jornada de Direito Civil, realizada no CJF em 2011: Enunciado 520: Art. 1.601. O conhecimento da ausência de vínculo biológico e a posse de estado de filho obstam a contestação da paternidade presumida e Enunciado 519: Art. 1.593. O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais.
Entre outros julgados que firmaram os requisitos do parentesco socioafetivo, cite-se o relatado pela Ministra Nancy Andrighi, no REsp 1087163/RJ da 3ª Turma do STJ, j. 18-8-2011.
Na espécie parental por afinidade, não há jurisprudência firmada, porque não há pleitos que tenham dado origem à reunião uniforme de julgados (v. Regina Beatriz Tavares da Silva (Coord.). Código Civil Comentado, 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1.776-1.781). Mas, evidentemente, não há como discrepar dos requisitos anteriormente citados. Na paternidade socioafetiva registral, um homem substitui o outro, portanto, na socioafetividade parental por afinidade também há de estar presente a substituição do pai biológico pelo padrasto. Se o pai biológico é pai presente, parece óbvio que não pode haver outro pai e que Antonio continuará a ser tratado e reputado como filho de João e não de Pedro.
Assim, na espécie registral e na espécie parental por afinidade, se Pedro desfizesse seu casamento com Ana e pretendesse abandonar Antonio, não seria exitoso, porque estaria obrigado a prestar-lhe pensão alimentícia, em face da proibição de comportamento contraditório ou da figura do venire contra factum proprium.
Desde que calcada a relação socioafetiva nos requisitos antes expostos, cabe a obrigação alimentar do pai para com o filho, conforme IV Jornada de Direito Civil, realizada no CJF em 2006: Enunciado 341: Art. 1.696. Para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar.
No entanto, reitere-se que, para surgir a obrigação alimentar, devem estar preenchidos os requisitos da paternidade socioafetiva, de modo que Pedro deve ser reconhecido na sociedade como pai de Antonio.
Afinal, o vínculo do parentesco por afinidade, existente entre padrasto e enteado não se enquadra nas hipóteses de obrigação alimentar previstas nos artigos 1.696 e 1.697 do Código Civil. E, ainda, o vínculo de parentesco se extingue, exceto para fins de impedimentos de casamento e de união estável, com o término da relação que o gerou, como estabelece o art. 1.595, § 2º do Código Civil.
Para que reflitamos sobre a decisão de 1ª Instância, noticiada como tendo sido proferida pela 1ª Vara de Família de São José em Santa Catarina e que teria fixado pensão alimentícia a ser prestada pelo homem que convivera com a mãe da menor sob o mesmo teto por apenas um ano, tendo essa menor pai biológico e prestador de alimentos, de duvidosa existência é a relação de união estável, e, portanto, o vínculo de afinidade, entre duas pessoas que coabitam sob o mesmo teto por curto período de tempo.
Não é crível que simplesmente porque bem tratou, porque propiciou algumas benesses para o enteado ou enteada, mas não substituiu o pai biológico, o padrasto possa ser forçado a prestar-lhe pensão alimentícia. Seria uma punição para quem fez o bem. Seria uma violação aos requisitos da paternidade socioafetiva, antes detalhados. Seria motivo de comodismo para a mãe e o pai biológicos, em termos de trabalho e busca de melhores recursos, obrigar o padrasto a prestar alimentos ao enteado. Seria dupla paternidade.
Em regra, descabe a dupla paternidade, mas, claro está que situação bem diversa, lembrando-se que o Direito de Família é repleto de casuísmos, é daquele jovem que teve a preservação da maternidade biológica, em respeito à memória da mãe consaguínea, falecida em decorrência do parto, tendo sido criado como filho desde tenra idade por outra mulher, em maternidade sociafetiva, fruto de longa e estável convivência, com manifestação pública, aliada ao afeto e consideração mútua (TJSP, 1ª Câm. Dir. Priv., AC 0006422-26.2011.8.26.0286, Rel. Des. Alcides Leopoldo e Silva Júnior, j. 14-8-2012).
Em suma, não existem regras absolutas no parentesco socioafetivo, cada caso deve ser analisado, diante das circunstâncias apresentadas, com as suas especificidades, embora, por trás, esteja sempre a lei, dando as diretrizes maiores para a solução dos conflitos.
Em suma, sempre recordando que a formação da família moderna tem sua base na afetividade e nos princípios constitucionais da dignidade e da solidariedade, não devem ser permitidos abusos, sob pena de banalização do conceito de parentesco socioafetivo.