E precisamente da leitura da
Constituição (art. 103-B, §§ 4º, 5º, inc. I, e 7º) que não se pode inferir
conforme o entendimento dos segmentos corporativos da sociedade brasileira de
que os Ministros do STF não se acham submetidos ao controle externo e social, o
qual detém natureza puramente administrativa. E nem que o CNJ tem competência
meramente "subsidiária" dos Tribunais nos encargos que lhe são reservados pela
Carta. Sobre isto, a Constituição não faz acepção de Juiz algum e o
entendimento dessa insubmissão importa dizer que os Membros da Suprema Corte
não são Juízes ou, sendo Juízes, não estão sujeitos à ordem normativa
estabelecida para todos.
Do ponto de vista
do sistema constitucional, o argumento parece absurdo, porque reserva a
determinada categoria funcional um feixe de privilégios inteiramente fora de
contexto. Além de confundir subsidiariedade com solidariedade funcional
(cooperação institucional).
A tese da subsidiariedade das atribuições do CNJ em face da
autonomia dos Tribunais é franciscana, e cede à abordagem do próprio sistema
constitucional, o qual se acha claramente integrado à principiologia da
República, do regime de freios-e-contrapesos e da soberania popular, dentre
outros. Desse modo, a harmonização que se deve procurar empreender na adequada
interpretação do texto constitucional não situa o intérprete no círculo
concêntrico e abstracionista de uma simples seção do texto da Lei Fundamental,
mas também e principalmente em sua espiritualidade, em sua mens lege. E igualmente no plano histórico em que
se acha fecundada.
Com efeito, o CNJ - em suas competências
administrativa e corrigente - exerce função constitucional solidária em relação
aos Tribunais. Ressalvar-lhes a própria autonomia não permite considerar, assim
do ponto de vista semântico quanto literal, que isso lhes acarrete a supressão
de uma competência igualmente associada a outros órgãos de controle instituídos
pela Constituição. De todo modo, é equivocado preconizar, após o advento da EC
45/2004, uma autonomia absoluta aos Tribunais, predicado que já não existe em
nosso sistema jurídico, porque nenhum poder republicano, instância ou
instituição está livre de controle político, jurídico e social - no sentido de
Mauro Cappelletti [Juízes Irresponsáveis?] - exatamente porque não se
tolera o despotismo, o qual, noutros termos, se vem invocando, por parte de
protagonistas do corporativismo judicial, como móvel, não raro irascível, para
defenestrar, ao menos em parte, o Controle Externo da Magistratura do cenário
institucional brasileiro sem uma sólida base de causa e efeito, e sem
consistência material.
O que se passa, na verdade, é que o
sistema de controle externo da Magistratura Nacional, sempre rechaçado pelos
arautos do corporativismo estratificado em nosso país, mediante sólidos consideranda, embora acidentais, acabou sendo
tolerado na Constituição com incompletudes conceituais.
Em primeiro lugar, as composições do CNJ
não deveriam ser eleitas do modo como presentemente o são. Essas composições
deveriam ser popularmente submetidas ao processo eleitoral comum, pois o
controle externo e social é para ser exercido por representantes diretos do
povo, sem exclusão dos segmentos de juristas, mas não exclusivamente com eles e
por eles. Por outro lado, conforme se possa compreender, em hipótese, a
existência de conflitos entre a jurisdição de última instância e a
circunscrição administrativa também de última instância em sede de controle
externo (não se trata aqui de controle interno da Administração Pública),
sucede que o controle para um tal tipo de conflito institucional deve ser
resolvido politicamente, mediante procedimento próprio a ser submetido, de lege ferenda, ao Senado Federal como nos casos dos
crimes de responsabilidade atribuídos a altos dignitários da República.
Este momento de crise institucional em
que se acha efervescente o debate público sobre os limites da atuação do CNJ,
enquanto agência constitucional para o controle externo do Poder Judiciário e
da Magistratura, já se divisou desde antes da Constituição de 1988 e mesmo
depois do seu advento. A resistência corporativa à instituição de um órgão para
o exercício desse tipo de controle sempre pareceu figadal aos demais segmentos
da Nação. Há um artigo da lavra deste autor, publicado na Revista dos Tribunais
ainda em 1994 sob o título Judiciário
Envergonhado: argumentos no favor do seu controle externo (ano 83, jan/94,
vol. 699, págs. 243 e SS), que retrata bem o cenário em que presentemente está
mergulhado o país.
Quanto à avaliação que esses mesmos
segmentos corporativos vem procedendo acerca do estilo da Ministra Eliana
Calmon, discorda-se em gênero, número e grau das críticas que lhe vem sendo
injustamente desferidas. A obra da Corregedora Nacional de Justiça é
irreprochável e não merece reparos. O combate à corrupção tem de ser intrépido,
contundente, para não deixar pedra sobre pedra. Pois, do contrário estaremos
fazendo um exercício de conciliação entre ordens virtualmente inconciliáveis e
isso é rigorosamente paradoxal. E nisto também reside o maior dos perigos para
a estabilidade social.
Segurança jurídica não pode servir,
ainda que inconscientemente, como pretexto ou instituto de proteção da
clandestinidade, da fraude, da malversação, da esperteza, e até do
desconhecimento de causa de quantos não estejam realmente preparados para o
desempenho de certas atividades para as quais acabaram escolhidos. Tudo isso
que à luz do sol se dissipa e que um argumento ingênuo de generalização
corrobora. Segurança jurídica, que é mínimo de Justiça, também é móvel de
sustentação normativa do Estado racional e democraticamente solidário, o qual
deve manter a paz e a Justiça, mediante um tratamento igualitário rigorosamente
a todos, e não apenas àqueles áulicos que se esmeram na arte de adular
poderosos, em cujos palácios, afinal, tudo se arranja à revelia da Nação.
É incompreensível que em se dispondo de
uma Constituição democrática, viva-se no país como se ela não existisse. Esses
autênticos territórios do passado - os Tribunais - carecem de modernização,
quadro que não se reduz à mera incorporação de artefatos tecnológicos,
informáticos, e muito menos às grandes reformas e edificações pretorianas.
Antes, sinaliza para uma radical mudança de mentalidade institucional e
corporativa que terá de ser levada a efeito pelas suas composições de todo
modo, representadas pelos atuais ou pelos futuros ocupantes dos mesmos cargos e
funções judiciários. Nada obstante, todo avanço histórico é traumático, porque implica
em quebra de paradigmas os quais agasalham privilégios que reclamam ser
distribuídos isonomicamente. A Ministra Calmon está fazendo a sua parte,
minando as bases do corporativismo judicial brasileiro, responsável que é pelas
mazelas do sistema desde a colônia. Sua autoridade moral será honrada pela
história e pela porção engajada da cidadania brasileira que nela vê sinal
decidido de transformação social.
Sobre o mais e independentemente do
Tribunal que se pense ou do ato de gestão em espécie que se cogite, em face de
sua autonomia (concessão de licença-prêmio, pagamento de verbas atrasadas
[autoconcedidas], geralmente com deslocamento unilateral de rubricas
orçamentárias, privilégio de concessão de benefícios, ordem de atendimento na
distribuição de pessoal auxiliar e de materiais de uso permanente,
interpretações distintas para casos semelhantes, convocações inconstitucionais
de Juízes com desvio de função, pagamento de diárias, critérios de promoção e
remoção, gerenciamento dos estoques, disciplina de horários etc), pode-se
afirmar, seguramente, que essa pletora é o problema central a perseguir.
Como os Tribunais (rigorosamente todos!)
são estruturas socialmente fechadas, herméticas, cuja linguagem comum torna
praticamente impossível o exercício do controle social espontâneo sobre suas
atividades de gestão, suas veredas e vicissitudes que são encapsuladas,
outrossim, na ação dos grupos judiciais que os compõem (como que
partidariamente), sucede que esses desencaixes financeiros com orçamento
público, além de outros atos de gestão administrativa, podem restar
malferidos (Juízes não são administradores por vocação e/ou por formação e
muito menos pela prática profissional que os congrega), embora justificados por
argumentação técnica nem sempre tão técnica assim. Há casos em que as soluções
administrativas decorrem do simples humor da autoridade administrativa
processante, mesmo quando esteja vinculada a comando superior em sentido
contrário do que decidira subjetivamente. E fica por isso mesmo, ou quase por
isso mesmo, ainda em nome de uma suposta autonomia como que absoluta dos
Tribunais. No mínimo, gera-se um retardamento idiopático à efetivação dos
direitos subjetivos, não raro fundamentais.
Todo esse processo tem de se mostrar à
sociedade e sofrer amplo regime de controle que não se compatibiliza, pelas
razões explicadas, com o controle estritamente interno, mas externo do Poder
Judiciário e da Magistratura. É nesse ponto em que a crise se estabelece, pois
os Tribunais não estão dispostos a abrir mão do conceito absoluto de autonomia,
pelo que podem continuar a fazer o que ninguém mais admite: gerenciar dinheiro
público, recursos humanos e materiais sem a efetiva fiscalização do povo.
O vício
argumentativo de origem, quanto à defesa dessa suposta autonomia dos Tribunais
para obstacularizar o exercício do Controle Externo, reside no fato de que
um tal tipo de controle não implica em uma necessária investigação
para nada, ao menos em princípio. Está-se controlando, ante a razão da
investidura judicial que obriga a irrepreensibilidade, os cenários por onde
transita a coisa pública, objeto de gerenciamento dos Juízes. Só há uma forma
de manter a higidez desse paradigma: controlando. E o Controle Externo da
Magistratura, sob encargo do CNJ, foi instituído pela Constituição (art.
103-B, § 4º) exatamente para isso.
Sossegue o leitor ainda preocupado com
os acontecimentos de fato perturbadores que assistimos no Brasil, hoje! Do caos
é que provém a ordem mais consubstancial aos valores essenciais. Quem está
acostumado com privilégios não sabe se conduzir solidariamente, e por isso
resiste. É muito difícil ser diferente, sobretudo numa sociedade de economia
periférica como a nossa. Para os que sofrem, quanto pior melhor, porque o atual
sistema não pode subsistir por muito tempo mais. Está absolutamente decadente,
é retrógrado, é injusto e excludente, e não está, por isso mesmo, de
acordo com o espírito da Constituição Cidadã.
Uma nota conjunta
das associações de Magistrados que suscita enquadramento da autoridade que agiu de
conformidade com o seu próprio regimento funcional (se inconstitucional esse
regimento referido em norma resolutiva, segue-se aí uma outra história) serve
apenas para acelerar o processo, já de todo traumático. O bom de tudo é que se
pode pressentir que o país está chegando ao ponto em que o controle externo e
social da Magistratura pode deixar de ser simplesmente seletivo, um mecanismo
mais ou menos de fiscalização, conforme tem acontecido até agora e desde o seu
nascedouro em 2004. Podemos estar vivenciando o anticlímax para o aprimoramento
definitivo dos mecanismos de controle da Magistratura e do Poder Judiciário
entre nós, sem eufemismos.
O Congresso Nacional deve se debruçar
sobre essa matéria, liquidar de vez a apreensão institucional disso resultante
e recorrente, e incluir os enunciados que não foram incluídos à época, ante
razões corporativas que ainda bradam com grande desenvoltura e presunção. Sobre
isto, dentre outros enunciados, sugere-se acrescentar, mediante Proposta de
Emenda Constitucional, um novo inciso ao art. 52, da Carta (inc. II-B), para
que se garanta uma nova competência ao Senado Federal, traduzida em processar e julgar os conflitos, em última instância, entre
a Jurisdição e o Controle Externo, exercido nos termos do art. 103-B, §§ 4º e
5º, da Constituição.
Os tempos são outros, porém muita gente
com uma mentalidade ultrapassada ainda continua na cena política e funcional do
Estado brasileiro. É preciso virar essa página de nossa história, o que não se
fará sem traumas. O processo está apenas começando.
Outrossim, o destemor só prevalece,
mesmo no Estado de Direito, em termos relativos, porque o autoritarismo, quase
sempre disfarçado e que ainda afeta gravemente sociedades do tipo da nossa, não
tem freios e nem regime de controle eficaz, e é do costume adjudicar para si o
discurso ético como forma subliminar de conservar as suas práticas
avelhantadas. É dessa atmosfera que ressaltam as chamadas ditaduras de ocasião,
ou dissimuladas, dentre as quais se destaca a denominada ditadura do Judiciário.
Por enquanto, o STF é mesmo o órgão da
República que detém o proverbial predicado de errar por último, mesmo em sede
de constituição acessória e acidental de políticas públicas, sendo que esse
paradigma pode não mais corresponder aos ditames da pós-modernidade. Por isso
mesmo, não por acaso a derrocada do comunismo aconteceu num átimo, a despeito
de suas estruturas mastodônticas e tradicionais.
O debate em comentário não se encerra enquanto a
Constituição se mantiver arranhada em pontos substanciais de suas normas e
valores. O caráter seletivo da responsabilização jurídica com que se exercita o
poder público retira o conteúdo democrático e republicano de sua atuação e dos
fundamentos com que se estabelece. Esses fundamentos são, pois, consubstanciais
ao caráter pétreo de várias das normas constitucionais em alusão, como a separação dos poderes, a igualdade perante
a lei (equal justice under law) e a soberania do povo.